se o Estado não está por nós…

Acredito que não haja necessidade de explicar aqui o que se passa no bairro do Pinheirinho em São José dos Campos. Qualquer brasileiro com acesso à internet e que esteja preocupado além de algo como o novo hit do Coldplay, sabe (ou deveria saber) ao menos o básico do que acontece por lá. De qualquer forma um resumo grosseiro não faz mal a ninguém e, na parte histórica, poupo-lhes de algumas visitas à Wikipédia.

Do começo
Em fevereiro de 2004, cerca de 150 famílias de sem-teto invadiram uma área de um milhão e trezentos mil metros quadrados pertencentes à massa falida da empresa Selecta S/A. Houve confrontos com a guarda municipal, mas as famílias resistiram.

Depois
A comunidade cresceu, com o passar dos anos muitas famílias se mudaram para o bairro que desenvolveu uma melhor estrutura que muitas favelas do país, com muitas casas entre os barracos, luz elétrica e transporte público. Quase duas mil famílias habitavam Pinheirinho até alguns dias atrás.

Quem?
O terreno da empresa falida é de propriedade do investidor Naji Nahas, libanês radicado no Brasil e que ganhou notoriedade como um grande especulador das bolsas de valores brasileiras. Na década de 80, Nahas se utilizou de um método para inflar o valor das ações de suas empresas na Bovespa, a bolsa de São Paulo. A técnica consistia em fazer empréstimos de altíssimo valor, mas de curto prazo, em diversos bancos e investir, por meio de laranjas, em suas próprias empresas. Foi inibido por ações dos diretores da Bovespa, que temiam acontecer em São Paulo o mesmo que já viam ocorrer em diversas bolsas ao redor do mundo por esquemas semelhantes de especulação e estavam receosos com o controle que Nahas tinha de aproximadamente 80% de todos os negócios realizados na Bovespa. Então se viu obrigado a mudar seus papéis para a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, mas não mudou seu modus operandi e em 1989 foi o principal responsável pelo crash na bolsa do Rio, fazendo-a perder para a Bovespa o posto de bolsa mais importante do país. Foi proibido de “jogar” na bolsa, mas não podia desperdiçar sua vocação para os crimes de colarinho branco e em 2008 foi preso na Operação Satiagraha da Polícia Federal, junto com nomes de peso como o banqueiro Daniel Dantas e o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta. Nahas é um dos artífices do esquema de corrupção e lavagem dinheiro fruto de desvios de verba que abasteceram, dentre outros, o ex-prefeito, que embolsou parte dos 3,8 bilhões de reais do esquema, quase metade do orçamento do município na época. Como é comum no Brasil, mais um lapso político/jurídico/midiático/moral ocorre e cá está Naji Nahas novamente tomando emprestado do governo do estado dois mil policiais para fazer valer seus direitos de Grande Empresário.

E então
Ameaçados pela ordem de despejo, os cidadãos se armaram em uma mimese decadente da polícia, usando pedaços de pau como cassetetes, tambores recortados como escudos (um deles usava uma antena da DirecTV), capacetes de moto e até cães de briga. Essa resistência ameaçou transformar o lugar numa verdadeira Canudos em solo paulista, mas um efetivo de dois mil policiais militares, munidos de armas que disparam balas de borracha, bombas de gás lacrimogênio, cassetetes e escudos de contenção, invandiram no domingo (22 de janeiro) o bairro e a resistência formada pouco pode fazer. Contando também com o suporte de blindados e helicópteros, a PM transformou o bairro em uma “praça de guerra”, nas palavras do secretário-geral da presidência, Gilberto Carvalho. Foi criado um cordão de isolamento que impediu que a imprensa se aproximasse e os relatos da operação são recortados, mas imagens como a de mães protegendo crianças de colo dos gases, cidadãos feridos com balas de borracha e crianças correndo de incêndios dão o tom da desocupação. A OAB de São José dos Campos afirma que houveram vítimas fatais no conflito, até o momento fala-se em cinco pessoas sendo, uma delas, uma criança.

não-cidadãos

O que mais?
O caso de Pinheirinho é mais um dentre os diversos ocorridos nos últimos meses em que a política deu lugar à truculência policial. Quatro deles são emblemáticos.

No Pará: No fim do ano passado, cerca de 300 pessoas, a maioria indígenas, se reuniram no canteiro de obras da usina de Belo Monte na cidade de Altamira e deixaram claro que não sairiam de lá antes das máquinas. A polícia acelerou o processo e, sem que a grande mídia noticiasse sequer a ocupação, retiraram os manifestantes à força.
Na reitoria: Também no fim do ano passado, centenas de estudantes da Universidade de São Paulo invadiram o prédio da reitoria com o objetivo de protestar contra a presença da PM no campus e pela renúncia do reitor Grandino Rodas. Foram retirados em mais uma operação policial que impediu a aproximação da imprensa. Os relatos de violência são inúmeros, mas a mídia não só fez pouco caso disso como se esforçou para passar a imagem dos estudantes como anarquistas depredadores que querem o campus livre para fumarem maconha. Vale uma menção desonrosa ao caso do estudante negro agredido, na mesma USP semanas depois, por um policial que desconfiou que ele não fizesse parte da universidade.
No Recife: Nas manifestações que começaram no fim do ano passado e seguem ocorrendo até hoje e que visam mobilizar a população contra o aumento do preço das passagens de ônibus, a intervenção violenta da polícia se tornou uma constante. Na última, ocorrida ontem (dia 23), os manifestantes se reuniram com flores nas mãos para enfatizar o caráter pacífico da movimentação, em vão, a tropa de choque foi acionada e mais uma rua do país ganhou uma nuvem de gás lacrimogênio.
Na Cracolândia: Demorou anos para que fossem estabelecidos projetos sociais pacíficos com o apoio de profissionais de diversas áreas na região que, pela grande circulação de usuários de crack, ficou conhecida como Cracolândia na cidade de São Paulo. Ainda sim, os projetos engatinhavam quando, por ordem judicial, a polícia passou a realizar operações de repressão aos moradores e frequentadores do lugar. De pacientes, os usuários de crack passaram a ser tratados como baratas que se dispersam pelas ruas da região nas diversas batidas policiais nos prédios tomados por eles. Apesar das diversas denúncias de abuso de autoridade, violência e negligência no trato com os usuários, o governador Geraldo Alckmin afirmou que a operação durará vários meses.

E daí?
Infelizmente, o “cidadão médio” não percebe a relação entre esses casos e, muito menos, o que eles nos dizem sobre o período em que vivemos. Pontualmente, é até capaz de tomar partido em prol da polícia, especialmente se estiver em uma classe social mais confortável e mais interessado em baixar o novo hit do Coldplay direto de seu iPhone, claro, para esses o direito à propriedade é inalienável. Infelizmente não são só esses que continuam elegendo tucanos ao governo de São Paulo.
A crença ingênua (na melhor das hipóteses) na polícia enquanto uma instituição neutra que tem como objetivo garantir a segurança de todos os cidadãos é outro fator que contribui para sua visão enevoada dessa situação. Para se entender a atual função da polícia dois conceitos devem estar claros na mente do cidadão:

1) Polícia não significa segurança. No programa de José Luiz Datena na Rede Bandeirantes, a mensagem passada é bastante clara, só existem duas causas de crime no país, falta de caráter do criminoso ou falta de polícia. Ignora-se aí a motivação do crime e prevalece o discurso maniqueísta do tal “cidadão de bem”, que não rouba e não mata. Para entender que a marginalização está intimamente ligada à pauperização não é necessário um doutorado em sociologia pela Sorbonne, talvez sequer ajude, tendo em vista a formação do presidente FHC, do mesmo partido que o atual governador de SP. Qualquer medida tomada em segurança pública que ignore a questão social será meramente paliativa. Simplesmente reprimir com a polícia crimes em uma região não dará fim a esses crimes, apenas fará com que se adaptem à vigilância e se desloquem para outras áreas. Não seria profético afirmar que é o que o ocorrerá com São Paulo e Rio de Janeiro, bem como em outras cidades que receberão jogos da Copa do Mundo e das Olimpíadas daqui há alguns anos, já que a prefeitura dessas cidades optou por métodos higienistas de lidar com assaltantes, traficantes e indigentes que apenas estão se mudando para longe, onde gringo não pode ver. Com a palavra, os maiores sociólogos do país, Facção Central:

Pra cinco mil Jesus dividiu cinco pães e dois peixes,
Atitude igual evita miolo no tapete.
A indiferença que não te deixa pôr a mão no bolso
É a mesma do louco que corta seu rosto.
Eterna vítima de joelhos, refém do medo
Sua pomba branca tem dois tiros no peito.
Por que prefere gastar no abrigo anti-nuclear
No banco, goma blindada, seu novo lar,
Enriquecer a indústria da segurança privada,
Comprar colete a prova de balas do que doar cesta básica.
A pior polícia do mundo não vai te ajudar
Pra um caso resolver catorze da Scotland Yard
Não vejo um puto lutando pra favela ter escola.
Só pra me trancar e jogar a chave fora.
A burguesa tem vergonha de ser brasileira.
Não pelo o pivete com fome mas porque me deu a senha.

2) Polícia não está na rua por todos. Os casos exemplificados só reforçam a noção de que a polícia não representa toda a população, mas uma elite. A desocupação de Pinheirinho, mais do que brutal, é um contracenso em matéria de política pública, afinal, alojar 1500 famílias é extremamente mais dispendioso do que indenizar o proprietário pelo terreno e legalizar o bairro. Porém, como mestre especulador que é, Naji Nahas sabe que essa indenização não se aproximaria do valor potencial de mercado daquela área e só isso explicaria o porquê da polícia de São Paulo ter se tornado sua milícia privada. Atitude semelhante temos em plena capital federal, onde a polícia serve mais uma vez aos interesses de cidadãs ricos em detrimento de populações sem força política. No Santuário dos Pajés os índios Tapuyas estão sendo ameaçados por empreiteiras que planejam transformar o lugar no auto-intitulado “primeiro bairro ecológico de Brasília”. Os operários, munidos de motoserras e, não raramente, acompanhados de policiais, só esperam cair por terra a última liminar da justiça em prol dos índios para darem um mesmo destino as árvores da região e começarem a construir o bairro mais caro da cidade. Nas poucas vezes em que o cidadão-médio reconhece ações falhas da polícia limita-se a comentar como são excessões, frutas podres na corporação, quando na realidade não se afastam tanto do procedimento padrão. A PM de São Paulo matou mais pessoas que todas as polícias dos EUA somadas nos últimos cinco anos e há quem acredite que isso é motivo para comemoração, “porque aqui tem mais bandido”, “estão fazendo seu trabalho”, “nossa pontaria é melhor”… Mesmo na hipótese absurda de todos os assassinados serem “criminosos canalhas” (do “léxico Datena”), isso é realmente uma boa notícia? Quem está a mercê da marginalização senão os setores mais frágeis da sociedade? A resposta nos leva a triste conclusão de que a polícia está exterminando a juventude pobre do país e a cor da pele desses mortos não é mera coincidência. O Facção Central diz:

O ódio atravessou a fronteira da favela
Pra decretar que paz é só embaixo da terra.
Não sou eu que a impunidade beneficia,
Me diz quantos Nicolau tão na delegacia
Quer o fim do barulho de tiro a noite
Faz abaixo-assinado contra Taurus-Colt
A fabrica de armas tá a mil na produção
Contrabandeando pro Rio, SP, Afeganistão
E a cada bala no defunto, um boy sai no lucro
Na guerra o mais inocente é o favelado de fuzil russo.

Consideremos também a decrepitude da polícia militar no país. A corporação além de genocida é corrupta e as denúncias comprovando isso que vemos na grande mídia são apenas a ponta do iceberg se estamos a par dos nomes dos poderosos ligados a ela. Nas manifestações na USP, uma crítica recorrente era a de que os estudantes exigiam tratamento diferenciado, já que a PM é para todos, mas o problema não é apenas a PM na USP, e sim toda a PM. Porém, aqueles que sofrem diariamente os abusos da polícia e aprenderam a chamá-los de “porcos”, não tem tanta visibilidade quanto estudantes universitários e sua revolta não teria um desfecho tão “brando” quanto o deles.
Como expressar indignação em um país que parece querer matar a saudade de seus Atos Institucionais? Como saber sequer se podemos nos considerar cidadãos? Se um estudante negro não equivale a um estudante branco, 1500 famílias não equivalem a um empresário corrupto e 20 mil índios não equivalem a um consórcio de alumínio, é difícil entender o que é preciso para ser tratado como cidadão no Brasil ($$$ ou não $$$). Até consertarem essa lógica, antes mesmo de brasileiros, sejamos todos revoltados.


somos todos Camilla Corrêa

Nessa semana, se tornou notícia a história da enfermeira Camilla Corrêa, que aparece em um vídeo, feito com uma câmera escondida, assassinando um filhote de cachorro. Ela o arremessa no chão, o acerta na cabeça com um balde e o sufoca dentro dele, tudo isso na frente de seu filho de três anos. Procurada pela polícia, Camilla disse que, apesar de pequeno, o filhote é um “monstro”. As imagens mostradas no vídeo são chocantes e vieram acompanhadas de uma grande comoção pública, dizem que o “monstro” é ela, que é desalmada, que deveriam lhe fazer o mesmo e torcem por uma resposta rápida da justiça.
Sendo um exemplo dentre tantos, alguns listados abaixo, se tornou muito claro enxergar como a relação dos humanos com os animais são parte de uma fórmula que evidencia a hipocrisia da nossa sociedade. Na língua falada pelos personagens do clássico “1984” de George Orwell, duplipensar é a ação de concluir algo duas vezes, acatar dois conceitos mesmo que um deles anule o outro, ou seja, é aceitar duas ideias sem atentar para suas incoerências. Em casos de maus-tratos a animais que ganham visibilidade da mídia, o duplipensar é um verbo que se mostra extremamente conveniente, Camilla não merece nosso desprezo ou ódio, não mais que todos os procedimentos necessários para possibilitar o almoço da maioria dos brasileiros. São poucos os que percebem essa incoerência e, por isso, as reações são tão extremas.

Pawła Kuczyńskiego Cachorro no cardápio
No ano passado, caiu na mídia o caso de um restaurante no bairro Bom Retiro da cidade de São Paulo em que cachorros e gatos de rua eram servidos no cardápio. Como de costume, os brasileiros se revoltaram com a situação e o negócio foi fechado. Mas o que mais se ouvia entre os comentários não era sobre higiene ou sobre as condições sanitárias da carne, a revolta partia do fato de serem cachorros e gatos, não suportavam a ideia de existirem pessoas capazes de se alimentar com o mesmo ser dócil que corre feliz pelos quintais de suas casas. Quem teria desafiado as “hipocriaturas” ao lembrar do aspecto estrutural da carne? Afinal, enquanto mamíferos, somos todos excelentes “churrasquinhos” potenciais. A diferença química entre a nossa carne, a de cachorro, a de gato e a de boi são mínimas. Há, inclusive, relatos de soldados que em zonas de guerra sentem cheiro de churrasco e se sentem famintos antes de descobrirem que o cheiro vem de valas com corpos humanos incinerados. Em 2007, a estudante norte-americana Tynesha Stewart  foi assassinada por seu namorado que para se livrar do corpo decidiu dividi-lo em partes que foram assadas em uma grelha durante três dias, tudo isso em seu apartamento no segundo andar, os vizinhos disseram não ter desconfiado de nada pois acharam que não passava de um churrasco. Nós mesmos quem colonizamos nossos sentidos para reagir a esses estímulos, mas em estados específicos, um pedaço cru de carne não desperta, pelo aspecto, fome até que tenha sido cozinhado e ganhe o aspecto de “bife”, onde não está nem uma parte de um organismo, muito menos um animal, isso para o cidadão comum no seu exercício rotineiro de duplipensar. Adoramos “coisificar” os seres, tarefa ainda mais fácil quando os particionamos: não é uma vaca, é alcatra, maminha e picanha; não é uma mulher, é coxa, peito e bunda.
Esse caso merece atenção, pois talvez nos diga algo mais sobre os revoltosos além do fato de não prezarem pela coerência. O restaurante era sul-coreano e atendia, não só a esses imigrantes, como a diversas etnias, em especial do sudeste asiático, onde a carne de cachorro e de gato são pratos comuns. A não ser que tenhamos na mente uma distinção lógica entre todos os animais que comemos e os cachorros e/ou gatos, caímos no risco de nos tornarmos etnocêntricos ou até racistas. Existem culturas que consideram uma abominação as vacas fazerem parte do nosso cardápio, para outras, comer cachorros é absolutamente natural, com que critério podemos criticar uma ou outra?

O vestido de carne
Uma das maiores polêmicas envolvendo a pop star Lady Gaga envolve sua aparição em um evento trajando um vestido confeccionado com pedaços de carne bovina (como vistos em açougues) costurados uns aos outros. Talvez tenha sido o momento de maior rejeição na carreira da artista, o público estava enojado com o mau gosto de Gaga.
Seda, cetim, camurça, lã, peles. Não são poucos os tecidos que usamos e que vem de animais, mas um deles desarticula em absoluto a chuva de críticas que atingiu a cantora e é justamente o mais comumente utilizado: o couro. Todos temos, mas convencionamos chamar de “couro” apenas o que retiramos de alguns animais como o boi, a cobra e o jacaré. Usamos nos nossos, cintos, sapatos, jaquetas, bolsas, carteiras, estofados… Por que então condenamos Lady Gaga em nosso julgamento moral? Por ter vestido outra parte do animal, aquilo que chamamos de “bife”? É anti-estético?
Diariamente, ONG’s como a PETA (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais, na sigla em inglês) espalham campanhas pela internet com foco na indústria de peles que abastece luxuosas grifes de moda pelo mundo. Algumas peles, como a de chinchila e vison, são símbolos enraizados de status. Seja pelo alto custo, pela diminuição da oferta de espécies ou pelo risco corrido por fabricantes ilegais (que não são poucos), mas um grande casaco de pele, feito com dezenas ou até centenas de animais, continua sendo visto como um acessório digno da mais fina dama. Os contrários a esse mercado auxiliam na disseminação dessas campanhas direto de seus iPad’s muito bem protegidos em capas de couro bovino. Podemos provar, mesmo que para nós mesmos, a diferença substancial entre os animais que achamos dignos de defender e aqueles que achamos dignos de vestir? Não seria porque os primeiros são (literalmente) fofos? Na mesma rede por onde circula essas campanhas tão vazias quanto a ONG que as cria, circula também o vídeo de dois homens, um com um trompete, outro com uma tuba. Eles tocam ao lado de um pasto e as vacas do outro lado da cerca começam a se aproximar para ouvir melhor a música.

O sucesso do vídeo (mais de três milhões de acesso na época dessa publicação) vem do estranhamento da situação, não estamos acostumados com vacas ouvindo música, isso porque as enxergamos e as tratamos como produtos e, criadas com o fim de morrer cedo para suprir a demanda do mercado, é óbvio que elas se comportem como produtos. É através desse pensamento que invisibilizamos todas as potencialidades dos animais que transformamos em meras mercadorias.

Diversão
Há alguns anos, o jogador de baseball norte-americano Michael Vick, na época um grande ídolo do esporte, esteve no centro do desprezo público quando descobriram seu hobby secreto: rinha de cães. Poucos estavam de acordo com o fato de Vick se divertir colocando cachorros para brigar e apostar nisso altas quantias de dinheiro. Mais uma vez, essa é uma crítica que pressupõe uma visão extremamente especista do mundo, depende de um duplipensar. O professor Gary Francione publicou, no ano da polêmica, um artigo em um jornal de Nova Jérsei entitulado “Somos todos Michael Vick” (que dá nome a esse texto) em que tenta mostrar aos leitores como as posições contrárias a Michael Vick culminam apenas por mostrar nossas próprias contradições. Fazê-los brigar, correr, fazer truques e montá-los são apenas algumas formas de como dispomos animais como meios de entretenimento. A própria cerimônia do churrasco se estabelece hoje como um momento de descontração e sociabilidade, nos divertimos e nos alimentamos, um especismo dentro de outro. Francione diz que “alguns gostam de fazer rinhas de cães, outros de se reunir em volta de uma churrasqueira, qual é a diferença?”
Gary Francione é um professor de Direito e um dos principais teóricos do abolicionismo animal, que é focado em campanhas pela extinção do status de propriedade dos não-humanos. Ele cunhou o termo “esquizofrenia moral” para se referir a essa forma paradoxal de lidarmos com animais e que reproduzimos pelo seu caráter socialmente conveniente. Temos animais na família que amamos como a qualquer parente, mas comemos outros nas refeições sem nenhum tipo de sentimento negativo, somos contra rodeios, mas usamos cremes com colágeno bovino porque funcionam melhor que os outros, ensinamos nossos filhos a respeitar os animais e os presenteamos com gaiolas e aquários, nos revoltamos com cenas de maus-tratos, mas começamos todas as manhãs com um grande copo de leite.

“Os escolhidos”
Apesar disso existe um grande esforço em nos ligar a certos animais. Pessoas batalhadoras são leoas, pessoas astutas são raposas, pouco inteligentes são burras, poderosas, tubarões, promíscuas, cachorroras ou galinhas, traiçoeiras, cobras. Todas ideias que reforçam preconceitos de espécie que, por conveniência, usamos para falar de nós mesmos, mesmo que só julguemos animais por qualidades humanas, o que não faz sentido algum. Alguns casos são mais úteis por nos esfregarem na cara um cúmulo de incoerência: quando transformamos em lições de vida a história de animais que escaparam aos seus destinos enquanto sub-espécies de nossa sociedade. Há alguns dias, um outro cãozinho ganhou a mídia quando, em uma enorme ninhada de cães marcados para morrer em um centro de zoonozes nova-iorquino, foi o único capaz de sobreviver à injeção letal. Esse acaso, ocasionado provavelmente por um bom sistema imunológico do animal ou por um erro na dosagem da substância usada na eutanásia, somado a um certo misticismo cristão, fez com que surgisse um enorme furor pelo cachorro, pessoas do país inteiro queriam adotá-lo. Milhares de animais são assassinados diariamente nos centros de zoonozes de todo mundo, atividade realizada com nossos impostos sob o pretexto de deixar as ruas livres de doenças transmitidas por eles, ataques e acidentes com os nossos (melhor estimados) carros. Porém, ao invés de adotarmos esses condenados à pena capital pelo seu trágico destino de terem nascido na rua, preferimos pagar por animais de raça: pitbulls, poodles, yorkshires; tudo porque os achamos mais bonitos ou porque acreditamos que combinam melhor com nossa personalidade. Para suprir a demanda por animais de “sangue azul” que existem empresas especializadas em “fabricá-los” em massa. Por que tirar um gato mestiço da rua ou do corredor da morte quando, por 200 ou 300 reais, podemos levar pra casa um gato de olho azul?
Estabelecemos ao cachorrinho sobrevivente um quê de milagre, como se uma providência divina houvesse impedido que ele morresse, como se não fosse sua hora de partir. Foi preciso levar uma perigosa dose de veneno para que surgisse uma identificação com o cachorro, todos queriam ter em casa o “escolhido”, talvez porque acreditem que traga bençãos ou boa sorte. Então foi justo o destino de todos os seus irmãos? Afinal, são filhos de Deus também. Ou não?
A história do “cãozinho milagroso” nos remete a muitas outras. São comuns histórias de animais “de corte” que se tornam de estimação ao escaparem de matadouros. Agregamos sentimentos aos seres que escapam ao sistema que criamos e que persiste graças aos nossos hábitos. Os animais que morrem nesse sistema pecam por sua incapacidade de não agirem como produtos.
Nossa contradição mais emblemática da relação com não-humanos está naquilo que dá vazão a todo o especismo: todos concordamos que é errado infligir dor a um ser sem necessidade. O problema está naquilo que consideramos necessário. Em um mundo onde um peru usa óculos e tem tendências ao canibalismo e as vacas sorriem estampadas nos rótulos de leite longa vida, onde o utilitarismo (mais dor, menos dor) ainda faz sentido, fica fácil dar uma resposta consensualmente aceita sobre o que é necessário. Mas enquanto dizer que tal animal serve ou não para morrer for algo tão comum e lógico para a maioria de nós, ainda será necessário, por um saudável senso de auto-crítica, responder se somos todos hipócritas ou se somos todos Camilla Corrêa. Afinal, ela julgou um cachorro uma ameaça e, por isso, o matou. Matamos tantos animais diariamente com o mesmo propósito ou ainda por causas mais fúteis. Aos que dizem que o revoltante foi a tortura a que ela submeteu o bicho, é forçoso lembrar que a sua morte não é, em nenhum aspecto, mais penosa que a morte de qualquer animal que consumimos todos os dias. E igualmente desnecessária.


Belo Monte e o utilitarismo colonial

Dentre todas as noções que aceitamos para legitimar o Estado como o conhecemos, a mais perigosa é a do progresso. Sem esforço entendemos que é um conceito antropocêntrico, pois animais e plantas não progridem, apenas sobrevivem e é aí que essas ideias divergem: o nosso progresso, enquanto grande civilização com uma demanda imensa de recursos, pressupõe a destruição desses outros. Reconhecendo ou não essa premissa, o brasileiro espera e deseja progresso, logo o dano ambiental colateral é acatado, é aceitável.
Recentemente vigora uma campanha na mídia mainstream em prol do que chamam de “sustentabilidade”. A agenda dessa campanha se limita a propagandear mudanças pontuais no comportamento dos cidadãos, dificilmente questionam velhos e enraizados hábitos e, se o fazem, amenizam o discurso e sugerem mudanças de mais fácil digestão: “faça caminhadas, use transporte coletivo, ande de bicicleta” ao invés de “evitem os carros”, “comam menos carne” ao invés de “não comam carne”, “reciclem” ao invés de “não consumam”. A hipocrisia dessa sustentabilidade hype atinge seus níveis mais altos pelo fato das grandes corporações, principais responsáveis pelos maiores problemas ambientais do planeta, não serem alvos das campanhas, de fato muitas dessas campanhas são fomentadas por essas mesmas empresas. A geração atual aprende sustentabilidade com bancos multinacionais, empresas farmacêuticas e “merchandisings sociais” de telenovelas; a empregada (negra, como podemos esperar da televisão) lava a louça com Tal® detergente e explica para a filha que aquela marca, devidamente anunciada nos créditos finais, planta árvores a cada “não-sei-quantas” embalagens produzidas.
Com tais conceitos formados que o brasileiro toma posições com relação aos projetos que o governo empreende para garantir o desenvolvimento do país e Belo Monte é, sem dúvida, um dos maiores.

Pra gringo ver e usar
A usina hidrelétrica de Belo Monte vem sendo planejada há cerca de trinta anos. Estudos geográficos de viabilidade técnica, falta de verba, alto risco do projeto arquitetônico e dificuldades nas licitações fizeram com que o início da construção atrasasse bastante, agora o governo está disposto a levar a obra adiante e espera que esteja concluída em 2015, planos que podem ser alterados com a realização de greves: os trabalhadores reclamam de baixos salários, condições insalubres de serviço, alimentos estragados e autoritarismo por parte da Eletronorte. Apesar de menos ambiciosa que nos projetos anteriores, Belo Monte será imensa. A área alagada será, aproveitando a popularidade dessa comparação no país, maior que cinco Maracanãs, 512Km² e a barragem será (outra) maior que três estátuas do Cristo Redentor, afirmam que terá potencial para suprir 10% da atual demanda energética do país. Tudo ao custo de 19 bilhões de reais, nas últimas estimativas. Certamente que é um valor altíssimo, mas adianto que, em matéria de eletricidade, o custo/benefício é bem vantajoso se tudo sair como o planejado. A eletricidade gerada em larga escala por meio de rios continua sendo uma das formas mais baratas conhecidas, o Brasil é, portanto, um país abençoado então, certo?
Apesar de representar mais de 40% do território nacional, a região Norte comporta menos de 8% da população, então com quem ficaria o excedente de produção de Belo Monte? E não é pouco, já que o Norte já tem sua porção de hidrelétricas, muitas entre as maiores do mundo como a de Tucuruí no Rio Tocantins, a maior 100% nacional, a de Samuel no Rio Jamari de Rondônia e a de Balbina no Uatumã do Amazonas. Assim, se supormos que o Norte não está exportando energia, percebemos como o que está produzindo alimenta seu setor industrial que se baseia, principalmente, no extrativismo. Note que, mesmo com a poderosa Zona Franca de Manaus, o Pará é o estado com o maior PIB do Norte, aliás, muito do que é produzido na capital do Amazonas só é possível graças à bauxita, ferro e manganês vindos do Pará. É um setor da indústria que exige muita eletricidade, sobre o alumínio, extraído da bauxita, “a energia representa, no mundo, de 25% a 33% do custo da produção. No nosso caso, ela está acima de 45%.” “Nosso caso”, o da Alcoa Inc., Companhia de Alumínio da América, na sigla em inglês, a terceira maior empresa de alumínio do mundo com sede no estado da Pensilvânia, a frase é do presidente da empresa na América Latina, Franklin Feder. Ele se refere ao ônus da produção no Maranhão por meio da Alumar (Alumínio Maranhão), consórcio formado pela Alcoa, Rio Tinto Alcan e BHP Billiton, a segunda é uma mineradora canadense, a maior produtora de alumínio do mundo e a terceira é a terceira maior empresa do planeta em faturamento. Na mesma entrevista, Feder conta sobre como estão investindo em duas hidrelétricas para baratear a produção de minério, sobre Belo Monte pareceu otimista: “É o terceiro maior projeto hidrelétrico do mundo e será construído no Pará, onde temos a mina de Juruti. Acho que ainda vamos participar de Belo Monte.”

“O sangue do Xingu vem em latas de alumínio”
“Hoje, seis setores industriais consomem 30% da energia elétrica produzida no país. Dois deles são mais vinculados ao mercado doméstico, que é o cimento e a indústria química. Mas os outros quatro têm uma parte considerável da produção para exportação: aço, alumínio primário, ferroligas e celulose”, disse Célio Bermann, professor da USP especialista na área energética. O custo social e ambiental da produção de tanto metal é assustador. Voltemos às três usinas do Norte citadas (todas da Eletronorte), o município de Tucuruí, onde funciona a usina homônima, tem o segundo maior orçamento do Pará, graças aos royalties recebidos pela energia. Construída durante a ditadura militar, a obra não demostra muitas preocupações ambientais, o mal planejamento fez com que a área alagada, por não haver circulação da água e contar com árvores submersas, se tornasse um ambiente propício para a reprodução de algas tóxicas que diminuíram bastante o índice de oxigênio do rio dizimando várias populações de peixes. A zona de alagamento se tornou um criadouro de mosquitos e fez explodir os casos de malária na região. A usina de Samuel também não é um exemplo, no ano passado, quando bateu recorde em geração de energia, a população ainda brigava com autoridades por alguma forma de compensação, 15 anos após a construção. Como em Tucuruí, a barragem alagou uma grande área, com o agravante de que uma parte era de plantações das comunidades locais que ainda encontram dificuldade para produzir ou para escoar sua produção. Na zona urbana a usina provoca alagamentos e a contaminação dos poços de água potável. Mas é em Balbina que está o maior desastre ambiental do país (até o momento). A baixa vazão do Rio Uatumã tornam o custo operacional altíssimo, ainda mais alto que o da energia utilizada antes de sua construção no fim da década de 80. O desequilíbrio biológico provocado na porção alagada da floresta fazem com que o lago emita uma quantidade de poluentes (dióxido de carbono e metano) dez vezes maiores que o de uma usina termelétrica.
Sendo imprescindível o progresso, estando inclusive estampado na bandeira, podemos ser levados a crer que é o preço a se pagar. Mas e se esse progresso não for, como dito, apenas antropocêntrico? E se depender também de uma diferenciação a ser aceita dentro de nossa própria espécie? É dessa concepção de progresso que se vale o governo para realizar empreitadas como a de Belo Monte e tantas outras, das margens do rio para as margens da sociedade, os dezenas de milhares de índios que serão retirados da região da usina não tem boas perspectivas para o futuro. Desde o início dos trâmites legais o projeto negligenciou os habitantes ribeirinhos com estudos mal realizados, dados manipulados e indisposições no tratamento das indenizações. A construção da barragem mudará drasticamente o ciclo do Rio Xingu, alterando o modo de vida de comunidades que tiravam proveito da vida no rio para sobreviverem. Também impedirá rotas de transporte fluvial utilizadas pelos índios, afinal, eles não precisam de carros e todo o seu ferro, aço e alumínio, frutos de dois mil anos de progresso técnico, para se locomoverem, uma canoa cumpre bem sua função com ajuda de um rio que não foi barrado. O resto do Brasil sim, precisa de carros e, além disso, precisa de aviões, eletrodomésticos e latas de cerveja. Ciente disso, a governadora do Maranhão, Roseana Sarney compareceu à inauguração da ampliação da planta da Alumar esse ano e disse tratar-se de “um marco de uma era voltada para a geração de emprego e renda”. Ao falar sobre sua participação no desenvolvimento do Maranhão, seu pai José Sarney diz no portal do Senado: “Alumínio é energia.” Índio não quer energia e é nesse ponto que o governo não é sincero com sua população, pois são os índios os donos legítimos da terra e a usina de Belo Monte é mais um dos desdobramentos de um genocídio étnico praticado por essa nação há meio milênio.

“Nos deram espelhos…”
Quem é índio? A mídia nos apresenta figuras genéricas do que seria um indígena e “um sujeito que vive nu na floresta” acaba sendo uma definição que parece satisfazer a maioria dos brasileiros. Se esse sujeito é brasileiro é uma questão que não estamos habituados a levantar, muito menos quais são seus direitos enquanto tal. Sobra pouco espaço uma vez que, independente do gentílico que possamos atribuir a eles, existe uma dificuldade de identificação e uma predisposição a um julgamento perigoso. Na cartilha reacionária de debate, a desconsideração de uma construção social que define ou influencia certas práticas e comportamentos é um princípio básico e, com isso, muito do que diz respeito à relação do brasileiro (entenda, não índio) com o índio limita-se a julgá-lo como menos brasileiro por não pagar impostos, menos sensato por beber demais ou menos índio por usar um shorts da Adidas. O fato é que no Brasil ainda existem índios que, aculturados ou não, ainda vivem em locais onde o progresso não chegou e é sequer bem vindo, assim o governo se utiliza de uma diplomacia bastante falha para convencê-los, bem como outros no caminho do progresso, a deixarem suas terras, onde vivem há várias gerações. Na hidrelétrica de Samuel, por exemplo, a Eletronorte, como compensação, ficou responsável pela construção de uma ponte que ligaria a estrada à população que ficou ilhada pelo lago da usina, a ponte nunca foi construída. Lembremos também de muitos dos índios afetados pela usina de Tucuruí e que jamais foram indenizados.
Nascidos imersos em um mundo onde a ordem pressupõe a circulação das mais diversas formas de mercadoria, dificilmente conseguiremos compreender o que significa para um índio estabelecer um preço para tudo o que ele conhece, principalmente quando esse preço é pago em uma moeda que, para ele, não faz sentido algum. Abstraímos isso ou acatamos (aquela história do preço do progresso) e chegamos a algumas situações emblemáticas das indenizações federais, uma delas parte de um acordo em que o governo cede uma verba de 30 mil reais por aldeia que escreve uma lista de compras que será feita com intermédio da Funai. Em muitas das aldeias cadastradas os índios se tornaram sedentários já que não tinham mais o trabalho de buscar a comida, outros ficaram doentes, surgiram também conflitos por causa produtos que alguns tinham e outros não. O que isso nos diz sobre os índios? A pergunta certa seria “o que isso nos diz sobre o nosso sistema?” Querem nos fazer acreditar que temos moeda para negociar com os índios e quando eles são pegos na mesma armadilha que todos nós encontramos a carta branca que precisávamos para desenterrar velhos anceios colonialistas.
O utilitarismo é um preceito filosófico que apregoa que busquemos comportamentos que produzam a maior quantidade de bem-estar possível minimizando-se os danos, ou seja, ser utilitarista é não ter receio em optar pelo “menos pior”. É comum, no pensamento utilitarista, a disposição numérica dos indivíduos afetados ou dos fatores da ação para se facilitar uma espécie de cálculo que nos dirá racionalmente qual é a melhor atitude a ser tomada: para um utilitarista duas pessoas são mais importantes que uma, simples. É com esse princípio que atua qualquer instituição do Estado enquanto monopólio do uso da força, a polícia ocupa favelas em megaoperações de guerra urbana pois considera que a possibilidade de vítimas colaterais é pequena. Claro que esse conceito se complica quando está sujeito aos nossos crivos pessoais, em uma situação envolvendo um refém e um sequestrador, a polícia considera a sobrevivência do primeiro e a morte do segundo um saldo mais favorável do que o contrário. Se nas decisões rotineiras o utilitarismo se mostra problemático, quando se trata de política nacional o que vemos é um abacaxi maior que o monstro de concreto pronto para obstruir o Xingu. Em algum momento estabelecemos que índios são cidadãos que “valem menos” que os demais brasileiros, engolimos a história sobre indenização e nos contentamos com a ideia de milhares de famílias indígenas abandonando a beira do rio para viver sob um teto do “Minha Casa, Minha Vida” e descobrir que o melhor que podem fazer, uma fez inseridos nesse meio, é arranjar um emprego. É mais fácil do que ter que pensar em assassinatos políticos, epidemias, desnutrição e massacres de aldeias acontecendo esporadicamente em nosso território sem cobertura de nenhuma grande mídia, como a que teve uma van de reportagem sequestrada pelos operários de Belo Monte que queriam que a causa da greve fosse noticiada.
No discurso de quem apoia Belo Monte sempre há sempre espaço para a afirmação de que o país precisa da usina para continuar a crescer. De que vale estarmos entre as dez maiores economias do planeta e não aparecermos nem perto das cinquenta nações com os maiores índices de desenvolvimento humano? Produção de eletricidade com menos impactos sociais e ambientais não fazem parte dos investimentos ou Belo Monte foi o melhor que conseguiram? Não teremos respostas tão cedo, mas para o pensamento utilitarista colonial, o custo é baixo, alguns milhares de índio não farão com que ganhemos alguns pontinhos de IDH. O Brasil precisar ou não de Belo Monte não torna a obra menos desastrosa e não torna sua realização mais aceitável. Mas, se concluída, não passará muito tempo em nossas consciências a vida e a morte das populações do Xingu e aprenderemos a conviver com mais esses fantasmas dentre tantos outros. Os fios de alta tensão irão possibilitar que após chegar em casa depois de um longo dia de trabalho possamos, mesmo vivendo em tribos de milhões de habitantes, ligar a televisão para nos sentirmos menos sozinhos.


obituário das possibilidades

Lucas, 7, músico

Da época de menino, Lucas lembrava-se de ir com sua mãe ao centro da cidade, onde ela pagava semanalmente as contas no banco. Detestava o ambiente, lá dentro era gelado, as pessoas estavam sempre com pressa e aquele segurança de bigodes parecia não gostar de crianças. Com alguma sorte, sua mãe lhe deixava ficar na porta, de onde ele se afastava alguns metros na calçada onde podia ouvir melhor a música que um sujeito tocava com um violão surrado. Era um homem muito sujo, com roupas e calçados rasgados e um boné vermelho com algum tipo de logotipo com a costura solta. Parecia ser simpático, mas Lucas gostava mesmo da música. Não entendia uma palavra do que ele cantava, mas gostava tanto que um dia se sentiu feliz ao ponto de dançar batendo os pés e pulando ao lado da lata de gorjetas antes de sua mãe lhe puxar pelo braço e sussurrar no ouvido “não fique perto desse louco”. Lucas, o músico, morreu naquela calçada no centro da cidade enquanto era levado para longe do homem por sua mãe. Seu Lucas, o empresário do ramo das lojas de varejo, viveu mais. Ficou rico, teve centenas de funcionários, comprou quatro apartamentos e vários carros importados. Como sua mãe, passou muito tempo em agências bancárias, longe dos acordes de “músicos indigentes”, como se expressou o vereador na apresentação de seu projeto de lei que proibiu os músicos de rua naquele município. Continuava detestando bancos, dizia que eram os responsáveis pelas suas quatro pontes de safena, apesar de seus filhos dizerem que a causa era “excesso de trabalho”. Um deles até trouxe de presente para ele, uma pequena escultura artesanal de uma viagem que fez ao interior de Minas Gerais: um homem de barro preto sentado em uma rocha tocando um violão, na base a palavra “calma”, o original dizia “carma”, mas imaginou que seu pai não acharia graça. Lucas colocou a escultura em uma estante na sala entre alguns retratos. Fora o micro system estéreo que ficava do outro lado da sala, era toda a música da casa.

Lillian, 8, física

“As árvores estão correndo”, disse Lillian para seu pai com o dedo indicador tocando o vidro do banco de trás do carro. Sem virar a cabeça para observar o incrível fenômeno que sua filha pequena relatava, o pai corrigiu a filha sem pensar muito, “não, amor, o carro é que está se mexendo, as árvores estão paradas”, disse. O vocativo “amor” deu um tom terno para o crime, mas teve o mesmo efeito que um travesseiro em frente ao rosto antes de um tiro certeiro na testa. Talvez se fosse um pouco mais velha e tivesse tido algumas aulas de física, esse homicídio teria sido evitado. Ela aprenderia que toda velocidade é uma grandeza vetorial, que só podemos falar em movimento à partir de um referencial. Da posição de Lillian, não era o carro que se mexia, eram todas aquelas árvores que corriam para trás como se fugissem de alguma coisa. E não só as árvores, lá fora tudo estava em constante movimento e Lillian no centro de tudo, era como o astro que era orbitado por todas as coisas da cidade. Parados estavam os bancos, o volante, aquele pinheirinho cheiroso pendurado no teto e o pai. Mais tarde a física não foi problema para a aluna Lillian, aprendeu bem a substituir com os números nas fórmulas e assim seus resultados coincidiam com os gabaritos dos seus livros didáticos. Não chegou a cursar a faculdade, porém seu primeiro filho está prestes a terminar o colegial e tem planos de prestar o vestibular. Ele tem dúvidas quanto a qual carreira escolher, mas detesta números. Lillian está com medo do momento em que se afastará de seu filho, ela diz que ser mãe é a coisa mais importante de sua vida e que teme que ele vá estudar em outra cidade.

 


o mercado do bairro e o mercado do mundo

Dona Neide acordou cedo para fazer as compras, queria que seus filhos levantassem com a mesa do café pronta, mas faltava pão e frutas. Então ela lavou bem o rosto, colocou sua roupa de mercado, que não é batida como a roupa de feira, mas não é alinhada como a roupa de domingo, calçou suas sandálias e pegou a lista de compras, melhor assim, sempre esquece alguma coisa e acaba descontando no marido, que ela sempre diz que deveria ter comprado antes. Abre a porta e toma o caminho do mercado, são só três quarteirões e é a oportunidade que ela tem de cumprimentar sua amiga Clarinda que mora no caminho e que passa a manhã inteira sentada na área de casa cumprimentando quem passa enquanto espera a hora de fazer o almoço.
O mercado não era o mesmo que há alguns anos atrás, antes era o estabelecimento do Seu Monteiro, um velho senhor amigo da família de Neide, agora era uma filial de uma mega rede estrangeira de supermercados. Neide gostava da nova variedade de produtos, o lugar também aumentou bastante, mas sentia falta de cumprimentar conhecidos lá dentro, conversar com as caixas, uma delas era filha do Seu Monteiro, e com o próprio Seu Monteiro, que estava sempre por lá e a deixava fazer uma ou outra compra fiado, nunca ficou devendo por mais de um mês. Agora estava sempre cheio de gente, gente estranha que guardava o carro no estacionamento enorme (até maior que o antigo mercado) entravam sem tirar os óculos escuros e pagavam com cartões prateados. As caixas eram uniformizadas, tinham uma maquiagem pesada e usavam um laço enorme embaixo do pescoço, pareciam aeromoças. Eram muito mais rápidas do que costumavam ser, aquele laser parecia captar o código de barras do produto assim que ela o pegava na mão, havia uma que parecia um robô de tão rápida. E como eram inexpressivas! Tudo o que diziam era “CPF na nota?” e o valor da compra, se Neide tentasse puxar uma conversa elas olhavam com o canto do olho para a câmera, davam uma resposta seca e um sorriso amarelo antes de empurrar os produtos para a mão do empacotador, trabalho que não existia no tempo do Seu Monteiro. O novo gerente ela nem conhecia, imaginava que devia ser um europeu ou americano que comandava tudo de um telefone do outro lado do mundo, por isso todas aquelas câmeras.
Andando pelo supermercado e tudo se parecia cada vez menos com o antigo lugar, nesse havia trilha sonora, umas músicas que tocavam numa rádio com o nome do mercado e que eram só um pouquinho mais animadas que o tipo de música que se houvia em um elevador. O chão era branco e lustroso, se algo caísse nele não demorava um minuto para uma voz surgir interrompendo o rádio e anunciando “limpador quatro, ala sete” e um rapaz de uniforme verde surgia com um rodo e um balde. Não eram os únicos uniformizados a circular por lá, havia alguns de azul que estavam constantemente andando com carrinhos e repondo todas as gôndolas, eles assustavam Dona Neide, pois nunca cumprimentavam e estavam sempre emburrados. Tinha também umas moças com rabo de cavalo que passavam voando em cima de patins com maquininhas nas mãos, sua filha pedia todas as vezes para trazer os patins e andar lá dentro, mas Neide sabia que não podia, o problema era explicar para a pequena. Outros eram aqueles funcionários que ficavam nas esquinas dos corredores atrás de pequenas bancadas distribuindo amostras de produtos novos, eram os mais amigáveis entre eles, os únicos com quem Neide conseguia conversar, uma vez comeu uns quatro pedaços de um bolo horrível tudo porque o rapaz, que usava um chapéu engraçado, tinha um sorriso contagiante e era incrivelmente simpático.
Uma coisa que ela sempre notava era nos produtos que jamais seriam vendidos na época em que Seu Monteiro era o dono. Roupas, brinquedos, louças, prataria, artigos esportivos. Uma vez viu até um caiaque! E nem existiam rios por perto, não rios pra remar ou nadar, o único rio que tinha era aquele que emporcalhou no tempo em que Neide teve seu primeiro filho, na mesma época em que inaugurou aquela fábrica famosa de sapatos e em que surgiu o primeiro mercado igual a esse que Neide frequentava. Gostava da área em que expunham as bebidas. Não bebia, só um vinhozinho de vez em quando, mas achava linda, com um assoalho de madeira envernizada e com centenas de garrafas de todas as formas e cores, essa área estava sempre cheia de adolescentes em grupinhos risonhos. Havia também um corredor que ela detestava passar. Na verdade adorava, detestava o fato de adorar. Era o corredor dos doces e chocolates. Eram infinitas cores, infinitas embalages, infinitos sabores e marcas, quando ela passava perto era quase automático que sua cabeça se virasse e lhe invadia uma sensação prazerosa que às vezes desencadeava um sorriso. Quantas vezes ela não havia entrado lá com a desculpa de comprar pão ou xampu só pra comprar uma barra enorme de chocolate branco que escondia dos filhos e comia durante a madrugada. Mas se achava gorda e não podia se dar a esse luxo enquanto não coubesse de novo na sua melhor roupa de domingo.
Dessa vez Neide encontrou uma amiga do trabalho, mas ela parece não tê-la reconhecido, mesmo trabalhando juntas há quase cinco anos, reagiu de um jeito estranho com o “bom dia” de Neide, respondeu automaticamente e continuou procurando a marca certa de massa de tomate. As pessoas andam mais apressadas, pensou, não era a primeira vez que isso acontecia. Chegou a pensar que houvesse alguma regra quanto a parar nos corredores para conversar, havia uma lista de coisas escrita com letras garrafais na entrada do mercado, não pareciam ser regras, Neide não lembrava o que era mas, se fossem regras, ela teria lido, com certeza.
Outra grande mudança no estabelecimento era no açougue, além de todas as carnes novas tinha uma máquina enorme que servia pra fatiar as carnes e os queijos e fazia um barulho infernal. Neide notou que o açougueiro mudava com muita frequência, lembrava-se de cinco só naquele ano. Uma vez testemunhou um acidente, quando a máquina fatiou um pedaço do dedo do funcionário que sangrou bastante, ele saiu segurando o pulso amparado por dois colegas antes de ser substituído por um outro rapaz que limpou a máquina e terminou de servir os 200 gramas de queijo prata que a senhora havia pedido, “toma cuidado pra não levar um pedaço de dedo”, brincou um sujeito na fila. Neide pensou se todos os outros haviam sido vítimas da máquina, mas não ficou pensando nisso, a lembrança de todo aquele sangue fez sua pressão cair e ela teve que se apoiar em uma prateleira. Uma moça de patins parou no corredor e a observou por alguns segundos antes de continuar sua rota deslizando pela ala vizinha. Constrangida, mesmo sem ter ficado parada nem um minuto, Neide continuou sua compra pelas frutas. E como havia frutas! Só maçãs eram quatro tipos, todas com selinhos colados e quase todas com a casca intacta, era uma delícia olhar, mas comer nem tanto. Eram boas, mas não como as maçãs que comprava no mercado do Seu Monteiro, eram aguadas e pareciam desmanchar na boca.
Tendo pegado tudo que precisava foi até o caixa-rápido, desses com limite até vinte volumes, coisa que também não existia antes, afinal quase todas as compras tinham menos de vinte volumes, agora as pessoas devem precisar de mais, pensava Neide. Pagou, pegou as sacolas e foi pensando nisso, tão aérea que quase foi atropelada por uma patinadora apressada. Passou todo o caminho de casa pensando em como não havia nada do antigo mercadinho ali, era tudo tão limpo, tão moderno e novo. Ao chegar em casa continuava com aquilo na cabeça enquanto passava o café para os filhos que, notando sua distração, perguntaram no que ela pensava. Respondeu que não era nada, mas alguns minutos depois enquanto servia café inclinou sua cabeça para baixo olhando uma mancha em sua blusa e pensou alto:
-Preciso de roupas novas.


veganismo por uma questão de classe

Hoje no Brasil a esquerda não é um tabu, não entre os jovens, em especial os de classe média que tiveram a oportunidade de um bom ensino. Estão longe de ser a maioria, mas já não é uma posição mais tão estranha entre estes. Entretanto, entre aqueles que ocupam cargos públicos administrativos a situação é um pouco diferente. Na política nacional a esquerda já foi reinterpretada, reformada, retocada, enxugada, pasteurizada e diluída até o que temos atualmente: uma massa disforme de partidos de uma pretensa esquerda onde tudo o que resta da ideologia de origem é a cor vermelha que colore seus logotipos.
Entre esses jovens, para quem o discurso socialista não é uma tentativa de legitimar a comilança de criancinhas, há algumas divergências, mas alguns posicionamentos são praticamente consensuais: enxergam o desemprego como algo muito além da falta de qualificação ou oportunidade, são, logicamente, contra políticas de guerra entre nações, reconhecem o lobby empresarial como um inimigo do povo, sabem que por trás da proibição das drogas existem tantos mais interesses corporativos e barreiras culturais do que preocupação com saúde pública, veem a necessidade da separação de Igreja e Estado, etc. Mas existe uma relação que essas pessoas foram incapazes de fazer: a do consumo de carne com tudo aquilo que, em outros contextos, elas combatem. Porque está bastante claro, especialmente em um país como o Brasil, que o consumo de carne é sim um trunfo de uma classe dominante. Se pensarmos no produto em si já temos algumas pistas, se enquanto quem “pode” come picanha e filé mignon, quem “não pode” come carne moída e salsicha, literalmente o subproduto daquilo que comem os primeiros, os restos.
Mas pensemos na atividade econômica como um todo. No ano passado a receita da pecuária bovina no país foi de nove bilhões e duzentos milhões de reais (R$ 9.200.000.000), uma sifra considerável, mas pra onde foi todo esse dinheiro? O governo arrecadou muito com impostos? Gerou muitos empregos? Trouxe desenvolvimento para as regiões produtoras? Vamos legitimar o não que a nova esquerda se recusa a enxergar. Não existe nenhuma atividade econômica no país tão subsidiada quanto a pecuária, principalmente se compreendemos “subsídio” como um auxílio governamental e não apenas como pacotes de verba doados, pois esses auxílios vem, não só na forma desses pacotes, mas no pagamento de vacinas, na facilitação em licitações de terra, afrouxamento na fiscalização das áreas produtivas, direcionamento das verbas para o desenvolvimento da infraestrutura de transportes que atenda a essa atividade, etc. Também nos auxílios prestados a atividades ligadas à pecuária, como é o caso das fazendas produtoras de ração para o gado. Aliás, o avanço dos latifúndios de soja sobre vários ecossistemas brasileiros é uma crítica bastante recorrente direcionada àqueles que se abstém do consumo de carne. Mas, não sejamos tolos, o que existe com soja na casa do brasileiro além do óleo de cozinha? Nas estimativas mais exageradas, os vegetarianos são 9% da população, seriam eles os responsáveis por quase toda a monocultura predatória da soja? O fato é que a maior parte dessas plantações é destinada à fabricação de ração animal e à exportação, sendo que, uma vez no país de destino, a maior parte se transformará também em ração. E mesmo, por reductio ad absurdum, na possibilidade do brasileiro substituir toda a sua dieta por soja, seria, em matéria de ocupação de terra, um progresso escandalosamente grande, talvez não só por essa ocupação, já que a pecuária aparece em qualquer relatório recente da ONU como uma das três principais causas de problemas ambientais no mundo. Oficialmente a pecuária ocupa 200 milhões de hectares, o que representa 23% do território nacional. Oficialmente. Não é raro encontrarmos notícias (em mídias alternativas, é óbvio) sobre áreas desmatadas ilegalmente ou de bois pastando em reservas ecológicas, áreas de preservação de mata atlântica, amazônica ou cerrado. Portanto, não seria exagero falar que 1/4 do Brasil virou pasto. 25% do país que produz R$4,60 por Km² ao longo de todo o ano nos cálculos mais otimistas.
A maior parte da carne produzida aqui não vai para o prato do brasileiro, é para exportação. Ou seja, quem come nossas florestas são os gringos, por aqui fica o pagamento e os empregos. Não exatamente, a pecuária é a pior empregadora dentre todas as atividades econômicas do planeta, uma média de um trabalhador para cada 5 mil Km², qualquer atividade agrícola tem um potencial de empregabilidade mais expressivo. Se a pecuária brasileira emprega pouco, também emprega mal e o documentário Carne Osso, produzido pela ONG Repórter Brasil, é um um retrato disso. As entrevistas com trabalhadores de matadouros e frigoríficos no país evidenciam as condições insalubres de serviço, baixos salários e alta carga-horária a que são submetidos. A aplicação sistemática do modelo fordista de produção e a pressão constante das metas fez aumentar vertiginosamente o índice de acidentes de trabalho, em especial as mutilações. Poderíamos falar, inclusive, de psicopatologias ou podemos acreditar que qualquer pessoa é capaz de matar um porco a marretadas ou degolar um boi, ambos em escala industrial, e dormir tranquilamente? Se a pecuária brasileira emprega pouco e emprega mal, também não emprega, escraviza. 54% de todos os casos de trabalho escravo no país estão concentrados na atividade pecuarista, a maioria devido a latifundiários que se aproveitam enquanto credores de dívidas para se utilizar de trabalhadores para a abertura de novas pastagens em áreas proibidas.
Por que então não comer carne é tão visto como uma atitude elitista? Elitista talvez por ser um questionamento ainda limitados àqueles com acesso a meios de informação, mas abandonar a carne não é caro, muito pelo contrário, é muito mais barato. Caro é compactuar com o ideal de consumo que as grandes corporações estão inventando para atender a esse mercado crescente de consumidores. O “capitalismo verde”, casado com uma preocupação hype com a saúde, alimenta com novos sucos de soja (em embalagens TetraPak), barrinhas de cereal, iogurtes, chocolates, salgadinhos (assados e não fritos) e uma nova composição dos pedidos nos restaurantes fast-food (com mais fruta ou menos frituras). É caro consumir tudo isso, mas essa é apenas mais uma forma, dentre muitas outras, de cooptação que o Capital faz de um movimento de dissidência legítima. Além disso, a carne ainda é um produto caro, e seria ainda mais se não fosse por todos os subsídios governamentais. Na Europa já não é mais segredo, a pecuária não sobrevive sem ajuda do governo. Aqui não seria tão diferente, é muito provável que, sem esses auxílios, a imensa maioria dos produtores não teria meios de sustentar seus negócios. Podemos afirmar que o governo optou por pagar o preço para que nós possamos comer carne, mas não nos isentamos totalmente, pois o custo disso acaba se refletindo em impostos, além do mais as florestas e todos os seres que vivem nelas são as maiores vítimas de toda essa cadeia produtiva. E é a demanda por carne uma das principais razões do interesse do governo pela assinatura do novo código florestal. Entre suas mudanças está a flexibilização do uso de áreas próximas a rios e lagos, afinal é bem mais fácil largar a boiada para pastar próxima da água, do que levar a água até ela, 14 mil litros para cada quilo de carne produzida aproximadamente, some a isso mais 900 litros necessários para a produção de um quilo de leite, para efeito de comparação, um quilo de trigo, soja e arroz consomem 1300, 2500 e 3000 litros, respectivamente. Outras mudanças no código envolvem outras Áreas de Preservação Permanente (APP’s) e a diminuição no rigor de suas normas de proteção: mais áreas para pastos. Algumas até mais fáceis para produzir que todas aquelas que precisam queimar com essa finalidade, sendo responsáveis por 60% das queimadas da Amazônia, sem contabilizar as queimadas para plantações de soja e outros insumos para a ração. Outros problemas ambientais são: a contaminação do solo e do lençol freático por excrementos com altas concentrações de antibióticos, fertilizantes e hormônios, problema este compartilhado com qualquer criação industrial de animais para consumo e altíssima emissão de gases estufa, sendo ainda mais responsável pelo aquecimento global que o setor de transportes.
Outro entrave no reconhecimento da carne como algo a ser evitado é a dificuldade que os cidadãos encontram no reconhecimento dos animais como dignos de respeito. Esse reconhecimento pressupõe uma noção bastante lógica: animais são Seres e não produtos. Se tornam produtos porque fazemos deles produtos, os confinamos, os marcamos a ferro, os colocamos em linhas de produção e estabelecemos a eles números ao invés de dignidade. Eles existem por suas próprias razões e a desculpa biologista de que “animais comem uns aos outros para sobreviver” não cabe em um contexto de uma sociedade moderna. Sociedade esta que se desenvolveu de forma não-natural, se multiplicou de forma não-natural, consome de forma não-natural e, para isso, precisa se apropriar de meios não-naturais para sustentar seu consumo. E quando falamos em animais falamos em mega-complexos industriais, esteiras automáticas, espingardas pneumáticas, hormônios, vacinas, esteróides e, o que há de mais emblemático, jaulas. Só recorrem à biologia e para nossa natureza selvagem ou bases evolutivas para justificar posições de comodidade, mas a mesma biologia é refutada em tantas outras questões: existe outra espécie no mundo que beba leite de outro animal? Se a vida a que se sujeitam esses seres não é capaz de sensibilizar e se sua qualificação enquanto produto não incomoda então pensemos mesmo nesse conceito, como máquinas de carne, leite ou ovos para explicar como esse processo atinge os “animais que importam”, os seres humanos. Essas máquinas processam um alimento já pronto para que dele se tire, em longo prazo, um outro alimento. Mas nesse processo a imensa maior parte do alimento que entrou no ciclo é perdida. Em suma, para um pouco de carne uma quantidade absurda de frutas, verduras e grãos é consumida. Não partindo do pressuposto malthusiano de que o aumento populacional representa um risco real de falta de alimentos, mas uma distribuição igualitária destes seria bastante facilitada sem esse “processador” intermediário. Com o dinheiro investido em um churrasco pequeno podemos comprar alimentos não-industrializados para um mês ou mais.
Não é uma questão personalista, o hábito de não consumir animais é a aplicação do princípio da não-violência e não-exploração humana ou não-humana em sua vida prática, ideia que se difunde no instante em que as pessoas próximas a você tomam conhecimento do caráter político de seu consumo ou abdicação dele. Se Gandhi dizia para nos tornarmos a mudança que esperamos do mundo, podemos expandir esse raciocínio aos nossos conhecidos. Precisamos diminuir a demanda, exigir que o governo cesse o lobby pecuarista, as diversas formas de auxílio custeados com dinheiro público e que seja sincero quanto ao ônus dessa atividade para o país. É um “vício cultural” que recusamos a abandonar, optamos todos os dias, ao abrir a geladeira, pelo genocídio.
O status de “cultura” garante ao onivorismo uma posição livre de questionamento? Talvez aos relativistas, como é para a mutilação do clitóris na África ou com o infanticídio na Ásia. A questão é que esse conjunto de hábitos de uma cultura bolorenta não beneficia nada nem ninguém além dos próprios produtores e entendam “produtores” no sentido estrito da palavra, apenas os donos das terras e dos meios de produção, já que nessa indústria os empregados não são os mais sortudos.

Precisamos mesmo continuar a perpetuar um hábito que só aprofunda o abismo de classes, só favorece aos poucos “Reis do Gado” e seu exército de homens armados com motoserras ou engravatados com a bandeira de algum partido de logotipo vermelho? Concentrando terras e renda na escala em que vemos no Brasil a pecuária se faz um exemplo extremo da meritocracia do Capital: o poder na mão de poucos que podem em detrimento de uma massa que não ousa.